Page 109 - Da Terra
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em que nasceram. Eles vingam-se lembrando-me do dia em que eu nasci, sabem que     LÍNGUA DE FOGO
 abomino ter nascido um dia para logo haver morrido e andar para aqui a contar velas sem

 fôlego para lhes apagar a chama. Sou a criança que olha a massa a levedar, vendo-a   Foi numa estação em que homens e mulheres cresciam lentos e corriam cabeços levando
 crescer até à marca na borda da escudela. Ainda não estou pronto para tender, mas lá   onde quer que fosse o vento da respiração ofegante. Eram animais domés cos com mãos
 chegarei. Chegaremos todos. E depois, plantados num tabuleiro, iremos ao forno para   selvagens, realizavam actos bárbaros de amor antes e depois de benzerem as terras

 alimentar  quem  fica.  Enfim,  aos  amigos  perdoamos  tudo.  Eu,  pelo  menos,  faço  por   porque alguém lhes dissera ser pecado não temer. Sofriam mar rios grandes desde
 perdoar tudo aos meus, que não são muitos, precisamente por serem escolhidos na sorte   pequenos, tornando-se vigorosos e duradouros como pedras plantadas no Crescente
 limpa que os astros des naram. É neste fim de tarde gracioso que os lembro e lhes   Fér l. Filhos de alguém, tornavam-se pais descascando uma ingrata gana de exis r. Nessa

 agradeço por me fazerem rico. Não fosse um desprezo absoluto pelos elogios, diria serem   estação ceifada à gadanha, tanto eles como elas lavravam e semeavam e mondavam para
 eles a escultura que melhor guardo dentro do coração. Nos pulmões trago a família.   que corrigidos ficassem os campos do joio enganoso dessas zonas. De saca a  racolo, as
 Valerá a pena explicar por que é dos amigos o coração e da família os pulmões? Seria   mães lançavam sementes balizando o lanço pretendido, semeavam os chãos sachados e

 redundante  perder  tempo  com  isso.  Falava  eu  de  mim  sentado  a  observar  o  sol   de novo estonados para que protegidos fossem os campos de ervas malditas. Os filhos
 espreguiçando-se sobre a baía. Passem-me uma guitarra para poder fazer música à minha   cresciam  espigados  como  gramíneas.  E  dali  se  esperava  que  brotassem  saudáveis  e
 medida,  dêem-me  uma  garrafa  de  vinho,  pão  quente  e  campo,  as  luzes  da  cidade   pacientes para que debulhada fosse a fome. O Verão os secava, e em estando bronzeados

 rasgando a aurora, dêem-me o desassossego da espera, dêem-me tudo o que, se não me   eram  segados.  Braçado  a  braçado,  entre  as  pernas  aos  molhos,  os  filhos  eram
 falha a memória, vou tendo e vou perdendo e vou reconquistando com obs nação e riso.   desembaraçados e as mães riam das gadanhas dos pais. Foi numa estação, nessa medida

 A gente reinventa o vinho esmagando as uvas. E eu gosto mesmo é do riso, da gargalhada   arbitrária da duração das coisas que não de agora, que em correndo lentas as horas tudo
 que ilumina a tristeza, do riso escondido por detrás da sabedoria com que se rela viza a    nha a sua época. E havia quem esperasse sem protestar pela demora do quanto em se
 importância  da  biografia.  Falta-me  aprender  tudo  para  que  o  realizado  adquira   fazendo ficava por fazer, porque as mãos calculavam com destreza a língua de fogo
 consistência.  Cá  nos  meus  paramentos,  nada  disto  me  vai  fazendo  grande  sen do.   aflorando à bichaneira sempre que alguém media a febre aos fornos. O fogo assim falava e

 Sobretudo porque é bom, porque é agradável con nuar vivo com a morte à espreita. Em   os homens o entendiam enquanto as mães arrumavam os filhos para que fizessem caso
 jeito de balanço, direi: saudades não tenho nenhumas, remorsos idem, arrependimentos   do que lhes era dito. Tinha história o alimento, antes que chegasse à boca em fa as

 vários, inconstâncias diversas, enfados tantos, projectos… talvez a serenidade de quem   repar das.  Os  fornos  respiravam  por  janelas  pequenas.  Hoje,  não  têm  história  nem
 fala pouco dizendo muito, ao contrário deste falar muito que diz tão pouco. Antologiar o   passado e o fogo fala línguas estrangeiras, mortas, assassinas, ninguém o entende. É só
 esquecimento, isso. Se eu não o dissesse, como poderia sabê-lo? Os ses, sempre a porra   até Deus querer, que ninguém é dono de si, mas que será feito desse fogo onde plantámos

 dos ses… Ah! Também desejaria uma caligrafia firme, preclara, constante, pudessem os   a cinza em que vivemos?
 dedos ter escapado às artroses profé cas de quem nasceu de um parto custoso.




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